Alimentação sem proteína animal e sem carências nutricionais – isso é possível?
1. Geral
Vários fatores psicossociais e ambientais, valores éticos, filosóficos e até religiosos, tais como preocupação contra a crueldade com os animais, a busca da sustentabilidade e de mais saudabilidade vêm transformando comportamentos, estilos de vida e hábitos de consumo e de alimentação.
Crescem no Brasil e no mundo o vegetarianismo e o veganismo. Conforme pesquisa de 2018 realizada no Brasil pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) e Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), quase 30 milhões de pessoas (14% da população nacional) se declararam vegetarianas. A previsão é que em 2023 esse número já pode ter ultrapassado os 40 milhões, representando já 20% da nossa população.
No caso dos veganos, essa mesma pesquisa apontou que eram 10 milhões de brasileiros aderindo a esse estilo de vida e de alimentação (2018).
2. Vegetarianismo e o veganismo – vários conceitos e vertentes
Vegetarianismo e o veganismo se referem a hábitos de dietas alimentares. Ambas as dietas excluem o consumo da carne de animal e se baseiam principalmente no consumo de alimentos de origem vegetal, sendo que os veganos excluem também derivados de origem animal, não só nos alimentos mas também a vestuário, calçados e em outros artigos.
O surgimento do vegetarianismo remonta à criação da -“The Vegetarian Society”, em 1847, sociedade que buscava excluir da dieta os produtos de carne e de derivados de animais, já o termo “vegan” surgiu em 1944 em Londres, com a formação da sociedade “The Vegan Society”.
Essas duas linhas de hábitos alimentares se desdobram em vários conceitos e vertentes, a saber:
# Vegetarianismo estrito ou vegano Em seu estilo de vida os veganos excluem todos os produtos de origem animal de sua alimentação: carne, laticínios, ovos, mel e qualquer outro produto de origem animal, mas também de não usam maquiagem testada em animais, nenhuma peça de vestuário feita com pele ou couro de animais.
# Lactovegetarianismo Os lactovegetarianos, além de alimentos vegetais, consomem leite e seus derivados como queijo, iogurte e manteiga, mas não comem carnes em geral, nem peixes e nem ovos.
# Ovovegetarianismo Além de alimentos vegetais, os ovovegetarianos consomem ovos, mas não comem produtos lácteos, carnes em geral e nem peixes.
# Ovolactovegetarianismo É a forma mais comum de vegetarianismo, que combinam as duas dietas acima, consumindo produtos lácteos, ovos e derivados, mas não comem carne e peixes.
# “Pescetarianismo” e “Pollovegetarianismo” Além de alimentos vegetais, os “pescetarianos” consomem peixes e frutos do mar, sendo que os “pollovegatarianos” consomem carne de aves, como frango e peru, além de alimentos vegetais. Ambos excluem carnes vermelhas.
# Flexitarianismo (semi-vegetarianismo) Com uma abordagem mais flexível o seu grande foco está na redução do consumo de produtos de origem animal, mas ocasionalmente se permitem consumir carnes ou peixes, mantendo os vegetais como base da dieta.
3. Suficiência no aporte de proteínas, vitaminas e minerais
Dietas baseada em maior consumo de vegetais vêm sendo associada a menores riscos de doenças cardíacas, câncer, dislipidemias, obesidade e diabetes.
O consumo de carnes ou outros alimentos de origem animal como peixes e ovos não é imprescindível para uma vida saudável, mas sua restrição pode trazer consequências negativas à saúde se não feita corretamente, pode acarretar deficiências nutricionais tais como redução da imunidade, atraso do desenvolvimento infantil, maior taxa de fraturas ósseas dentre outros problemas. Vale dizer que quanto maior a restrição, maior a necessidade de atenção.
As deficiências mais comumente relatadas são as de proteína, cálcio, ferro, vitaminas B12, vitamina D, ácido graxo poli-insaturado ômega-3, zinco. Com a evolução dos conhecimentos de nutrição e disponibilidade de suplementos, essas deficiências são hoje perfeitamente evitáveis. Assim sendo, a adoção de dietas veganas e vegetarianas requer conhecimentos de nutrição. Na ausência desses conhecimentos, é recomendado que o/a praticante seja devidamente acompanhado por um nutricionista, especialmente no caso de indivíduos em fases de vida mais críticas, como é o caso de crianças em fase de crescimento, grávidas, idosos e pessoas com patologias especificas.
3.1 Sobre qualidade nutricional das proteínas e seu potencial de deficiência
Para abordar esse aspecto, temos de primeiramente relembrar, ou informar para quem não sabe: proteínas são substâncias compostas por 20 aminoácidos, que são os “blocos de construção” fundamentais para nosso corpo sintetizar as proteínas que nosso organismo precisa, principalmente para fazer os músculos e construir todo nosso sistema de defesa imunológica contra invasores como vírus e bactérias. Existem 20 desses blocos, sendo 9 deles chamados de “essenciais”, pois ao contrário dos demais que podem ser produzidos por nosso corpo através da alimentação, precisamos recebê-los já prontinhos via nossa dieta. Esses nove aminoácidos essenciais são: histidina, isoleucina, leucina, valina, lisina, metionina, fenilalanina, treonina, triptofano. Esses 9 essenciais se unem aos outros 11 não essenciais, para assim sintetizar todas as proteínas que precisamos.
As proteínas de origem animal são em geral “proteínas completas”, pois contêm todos os nove aminoácidos essenciais. Mas claro que não basta de sua composição correta, mas também sua quantidade deve ser consumida em quantidade suficiente. Exemplos dessas proteínas são as carnes, peixes, ovos, leite e seus derivados. Por outro lado, a maioria das proteínas vegetais é considerada “incompleta”, pois não contêm todos os aminoácidos essenciais em quantidades adequadas. Mas há exceções: por exemplo, a quinoa é uma proteína completa, pois tem todos os nove essenciais mais os onze não essenciais.
Então basta avaliar a quantidade de aminoácidos essenciais, presentes para avaliar o valor nutricional “real” de uma proteína?
Pena que não é assim tão simples, pois além da composição e “balanceamento” de seus aminoácidos, outros fatores interferem, tais como a digestibilidade e a presença de fatores anti-nutricionais.
3.1.1 Mas então como avaliar a qualidade nutricional de uma proteína?
Para facilitar, a FAO– Food and Agriculture Organization estabeleceu como referencial o método DIASS = “Digestible Indispensable Amino Acid Score” que em português é Índice de Aminoácidos Indispensáveis Digeríveis, é um método que avalia a digestibilidade dos aminoácidos no final do intestino delgado, fornecendo uma medida mais precisa das quantidades de aminoácidos absorvidos pelo corpo e da contribuição da proteína para as necessidades humanas de aminoácidos e nitrogênio. Na tabela abaixo ilustramos alguns valores DIASS de proteínas animais e vegetais.
Tabela de alores DIASS para algumas proteínas animais e vegetais (Referência .
Vale observar que onde a preparação não está especificada não difere necessariamente daquelas onde esse detalhe está indicado.
3.1.2 Combinação de fontes de proteínas
Uma boa dica é que a combinação de fontes de proteínas múltiplas tende a aumentar o DIAAS, o que pode melhorar e maximizar as dietas à base de vegetais. Tanto que o nosso tradicional arroz com feijão tem um balanço ideal, porque o arroz é deficiente em lisina, enquanto e o feijão em metionina, mas o que faltam em um deles está presente no outro, criando um efeito de complementariedade. Soja e a lentilha também trazem um equilíbrio adequado.
A Dra. Silvia Cozzolino, pesquisadora e ex-professora do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP da Universidade de São Paulo (FCF-USP) informa no site Alimentos sem Mitos do FoRC – Food Research Center, o Centro de Pesquisa em Alimentos que fica no campus da USP em São Paulo : “Não adianta colocar quantidades aleatórias de arroz e feijão no prato. Corre-se o risco de consumir muito de uma e pouco de outra, não produzindo um equilíbrio. Ter muito de um tipo de aminoácido e quase nada de outro não ajuda na produção das proteínas, porque elas são resultado da combinação de diferentes tipos de aminoácidos”. “Dependendo da quantidade de aminoácido faltante, seu organismo não vai aproveitar 100% da proteína, mas 90%, 70%. Por isso recomendamos, por exemplo, que se consuma três partes de arroz para uma de feijão”, explica.
“Na verdade, quando você não tem um aminoácido na quantidade adequada, todos os outros ficam comprometidos e isso prejudica a síntese da proteína. Isso ocorre por causa do metabolismo do corpo. É um processo programado geneticamente. O organismo vai usar esse arsenal de aminoácidos para produzir as proteínas de que precisa. Se você tem uma limitação de um aminoácido, o excesso de um segundo não vai cobrir essa deficiência, ou seja, a ausência ou insuficiência de um aminoácido essencial vai limitar o aproveitamento de todos os demais para a síntese proteica. Como orientação geral, as pessoas devem procurar ter alimentação balanceada e buscar uma orientação profissional e personalizada junto a um/a nutricionista”.Site www.alimentossemmitos.com.br”
Importante: para um maior rigor, numa dieta devem ser também considerados os efeitos dos aminoácidos limitantes. Em uma proteína específica, os aminoácidos essenciais faltantes, ou seja, aqueles presentes em menor quantidade é o chamado “aminoácido limitante”. Essa limitação impedirá a taxa da síntese proteica. Os aminoácidos remanescentes serão considerados “excedentes” e serão oxidados pelo metabolismo de nosso corpo.
4. E quanto às vitaminas e minerais?
A deficiência de vitaminas e minerais está muito mais ligada com o equilíbrio da alimentação, do que com a ingestão ou não de proteína animal. Uma pessoa carnívora pode sim ter carência desses nutrientes por falta de uma alimentação balanceada, e vise e versa.
Em geral, o grande problema de uma pessoa vegetariana é a falta de conhecimento e não saber fazer as combinações de forma correta, que por vezes acaba excluindo a proteína animal e substituindo-a por carboidratos.
4.1 Exemplos de como fazer combinações corretas
O cálcio proveniente dos laticínios pode ser substituído por couve, rúcula, agrião, mostarda, escarola, brócolis, tofu e gergelim
O ferro das carnes vermelhas pode ser substituído por leguminosas, sementes de abóbora de girassol, ou ainda por vegetais de cor verde escuro, MAS é importante alertar que a biodisponibilidade do ferro “não heme” encontrado nos vegetais é menor do que do ferro “heme”proveniente em alimentos de origem animal. Por outro lado, a vitamina C (ácido ascórbico) ajuda bastante na absorção de ferro “não heme”. Assim deve-se sempre associar o consumo de alguma fonte de vitamina C após a refeição para tornar o ferro mais facilmente absorvível pelo organismo.
Dica: não esqueça de tomar um suco de limão, laranja, acerola, camu-camu* ou outro rico em vitamina C após uma refeição com vegetais ricos em ferro!
*Camu-camu é o fruto do camucamuzeiro, arbusto nativo da região amazônica, conhecido regionalmente como caçarí ou araçá d’água. Segundo pesquisa da Embrapa o camu-camu é 20 vezes superior ao da acerola e 60 vezes ao do limão.
4.2 Atenção à limitação da vitamina B12!
Essa vitamina é dificilmente encontrada nos alimentos vegetais, mas há algumas exceções em alguns produtos fermentados, por exemplo o tempeh, originário da Indonésia e popular no sudeste do continente asiático que é rico nessa vitamina: aproximadamente 60 gramas de tempeh por dia pode fornecer a necessidade diária de vitamina B-12. O tempeh é feito de grãos inteiros de leguminosas, em geral soja, cozidos e fermentados pelo fungo Rhizopus oligosporus.
A vitamina B12– a cobalamina – tem um papel fundamental na saúde neural. Sua deficiência afeta negativamente a formação das bainhas de mielina, o que altera a transmissão de impulsos nervosos. Sua deficiência, se mantida durante vários anos, pode levar a uma deficiência crônica gerando danos neurológicos como déficits de memória, disfunções cognitivas, demência e transtornos depressivos. Sua ausência pode também levar à anemia megaloblástica, com formação de hemácias gigantes (defeituosas) no sangue, afetando o transporte de oxigênio para as células do corpo, causando fadiga, cansaço e desânimo.
Importante: nas crianças a deficiência de vitamina B12 impacta o crescimento, além de aumentar riscos de problemas cardiovasculares e neurológicos, com potenciais danos cognitivos irreversíveis.
Pelas razões acima expostas, em geral a sua suplementação se faz necessária.
5. Conclusão:
Compreendendo as diferentes vertentes do vegetarianismo, combinando corretamente os alimentos vegetais ricos em proteínas e nutrientes, e se necessário fazendo a suplementação de Vitamina B12, é possível atender todas as necessidades nutricionais essenciais de um adulto sadio. É importante compreender que em certas situações pode haver a necessidade de suplementação nutricional. O vegetarianismo é portanto uma opção viável para uma alimentação saudável e sem carências nutricionais, desde que levadas em consideração as limitações apontadas nesse artigo.
Autores: Lucas Bandeira nutricionista e Ellen Lopes farmacêutica e bioquimica
Referências principais:
- Cozzolino S.M.F., Biodisponibilidade dos Nutrientes,- Livro -6ª ed. São Paulo: Editora Manole; 2020.
- Rebecca F. L. Aspectos nutricionais da dieta vegana: revisão sobre os benefícios e riscos para a saúde – Trabalho de Conclusão do Curso de Farmácia-Bioquímica da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, 2020 disponível em https://repositorio.usp.br/directbitstream/25e06440-d174-46aa-9d9c-b40a4aa58685/3059527.pdf
Referências de sites consultados:
- https://svb.org.br/vegetarianismo-e-veganismo/o-que-e/
- https://en.wikipedia.org/wiki/Digestible_Indispensable_Amino_Acid_Score
- https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/02/IT-N%C2%BA-03.2020-DIETAS-VEGETARIANAS.pdf
- https://svb.org.br/2469-pesquisa-do-ibope-aponta-crescimento-historico-no-numero-de-vegetarianos-no-brasil/
- https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/18044229/pesquisa-estuda-fruto-que-tem-60-vezes-mais-vitamina-c-que-o-limao#:~:text=O%20teor%20de%20%C3%A1cido%20asc%C3%B3rbico,60%20vezes%20ao%20do%20lim%C3%A3o.